quarta-feira, 11 de junho de 2008

CONTRABRANDING

A produção do espaço não pode mais ser isolada do conceito do branding. Isso pode ser percebido facilmente na disputa de diversos tipos de instituições, empresas e outros para “etiquetar” os espaços, sejam pequenas placas em praças, na nomeação de equipamentos urbanos ou mesmo na subordinação de zonas inteiras da cidade ao corpo de alguma marca.
A percepção da arquitetura, do desenho da cidade, do espaço construído é transformada por esses elementos inseridos no contexto urbano. A leitura do espaço pode ser modificada, condicionada pela introdução desses ícones, que se inter-relacionam em diferentes escalas, dispostas em sucessivas camadas: a do pedestre, do automóvel e a das grandes visuais – onde se apresenta uma leitura do desenho urbano.
Mas não é somente a presença desses elementos que determina a influência desse fenômeno na produção da cidade. O trabalho do branding é muito mais abrangente. Ele estabelece a constante associação desses objetos presentes na cidade com aqueles que se dão no meio das telecomunicações, na internet e outros. Na verdade, não constrói simplesmente a relação desses objetos entre si, mas principalmente entre o sentido, a mensagem que a presença desses em seu meio resulta.
Outro fator deve ser considerado também ao se tratar da questão do branding urbano. O próprio trabalho de image-making que começa a ser lançado pelas administrações das grandes cidades que adequam a sua gestão aos regulamentos do planejamento estratégico.

“Inspirado em conceitos e técnicas oriundos do planejamento empresarial, originalmente sistematizados na Harvard Business School, o planejamento estratégico, segundo seus defensores, deve ser adotado pelos governos locais em razão de estarem as cidades submetidas às mesmas condições e desafios que as empresas”
(VAINER, Carlos B. Pátria, Empresa e Mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. in. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis RJ. Vozes, 2000. p.76)

Desse modo, se as cidades estão submetidas àos mesmos desafios que as empresas, elas estão em competição entre si, na disputa do mercado global de investimentos. Na análise dessas teorias de planejamento estratégico urbano, Carlos Vainer percebe uma interessante característica implícita:

“seu discurso (planejamento estratégico) se estrutura basicamente sobre a paradoxal articulação de três analogias constitutivas: a cidade é uma mercadoria, a cidade é uma empresa, a cidade é uma pátria”.
(VAINER, Carlos B. op. cit. p.77)

Contudo, essa constatação permite a construção de outra analogia, talvez até mais esclarecedora e precisa. Na verdade, já existe algo que se apresenta simultaneamente como uma mercadoria, uma empresa e um conjunto de ideais e sentimentos: uma marca. O conceito de uma cidade-marca não exclui em nenhuma hipótese as conseqüências apresentadas nessa crítica, como a de que:

“este projeto de cidade implica a direta e imediata apropriação da cidade por interesses empresariais globalizados e depende, em grande medida, do banimento da política e da eliminação do conflito e das condições de exercício de cidadania”.
(VAINER, Carlos B. op.cit. p.78)

Pelo contrário, abre um ramo maior de possibilidades de explorar esse procedimento urbanístico. Uma cidade que se coloca como uma marca, automaticamente importa para si a lógica da gestão de marca, o modo de operar de grandes corporações que terceirizam sua produção material e investem a maior parte de seu capital em branding. Isso significaria a criação de um enorme problema, uma vez que a “cidade real” (uma construção coletiva de uma sociedade) perde importância e força diante da necessidade da edificação da imagem da cidade-marca, forjada por um extensivo trabalho de branding. Começa a ficar clara diferença entre um espaço que é construído “por e para” uma sociedade realizar suas atividades e desfrute; e um espaço construído de acordo com diretrizes de branding para a estruturação de uma imagem forte para o mercado. Assim, neste caso:

“Vale a pena lembrar que o processo de branding começa em um grupo de pessoas sentando-se em torno de uma mesa para tentar invocar uma imagem ideal; soltam palavras como ‘livre’, ‘independente’, ‘moderno’. Depois elas tentam descobrir formas do mundo real que incorporem esses conceitos e características, primeiro através de marketing, depois de ambientes de varejo como superlojas, cadeias de lojas e cafeterias e depois – se forem realmente moderninhas – por meio de experiências de estilo de vida total, como parques temáticos, hotéis, barcos de cruzeiro e cidades”.
(KLEIN, Naomi. Sem logo: A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de janeiro: Record, 2006. p.181)


Para uma melhor interpretação, seria preciso adaptar essa descrição do trabalho de branding de grandes corporações ao que é necessário para o desenvolvimento pleno do planejamento estratégico. No “lembrete” de Naomi Klein poderíamos substituir as superlojas por equipamentos urbanos espetaculares (como mega-pontes, etc.) e as cidades por sociedades, uma vez que esse branding é direcionado para a legitimação da construção da cidade-marca, da produção de espaços voltados simplesmente à estruturação de uma imagem, e não necessariamente espaços que reflitam as reais necessidades da sociedade que a habita.
As conseqüências dessa “acanhada” troca de conceitos na produção do espaço podem ser percebidas nesta leitura feita por Vainer do Plano Estratégico do Rio de Janeiro, que teve sua elaboração com consultoria de profissionais catalães, importando diretrizes da experiência de Barcelona:

“A preocupação com a imagem atinge seu paroxismo entre os estrategistas carioca-catalães quando o diagnóstico aponta como um dos problemas a ‘forte visibilidade da população de rua’ (Plano Estratégico do Rio de Janeiro, p.50): a miséria estrategicamente redefinida como problema paisagístico (ou ambiental)”.
(VAINER, Carlos B. op.cit. p.81)

Além dessa conseqüente “produção de cenários” livres de contradições sociais, a que esse tipo de gestão urbana conduz, outro braço do branding da cidade-marca seria o que Otilia Arantes coloca:

“(...) como o planejamento estratégico é antes de tudo um empreendimento de comunicação e promoção, compreende-se que tal âncora identitária recaia de preferência na grande quermesse da chamada animação cultural. Inútil frisar nesta altura do debate – quase lugar comum – que o que está assim em promoção é um produto inédito, a saber, a própria cidade, que não se vende, como se disse, se não fizer acompanhar por uma adequada política de image-making.”
(ARANTES, Otília. Uma Estratégia Fatal - A cultura nas novas gerações urbanas. in A Cidade do Pensamento Unico: desmanchando consensos. Petrópolis RJ. Vozes, 2000 p.16)


Definindo essa animação cultural como a:

“... periodização do “espetáculo urbano”: a substituição pós-moderna do espetáculo como forma de resistência ou de festa popular revolucionária, pelo espetáculo como forma de controle social.”
(ARANTES, Otília. op. cit. p.22)

Mais uma vez, comparando com o procedimento das supermarcas, isso se apresenta como nada mais que a busca de sinergia entre marca e cultura, ou seja, o trabalho de tentar fazer com que o produto (marca em sua forma material) e a cultura se fundam em uma coisa una. A cultura deixa de ser patrocinada e passa a ser produzida por essas grandes companhias. Da mesma forma, seguindo a mesma linha de raciocínio, a ameaça que a consolidação de uma cidade-marca pode representar é a própria política deixar de ser patrocinada e passar a ser produzida. Essa ameaça é bem ilustrada na seguinte análise de Klein:

“Como a missão dos executivos das corporações passou a ser imbuir as suas empresas de profundo ‘senso de cool’, pode-se prever uma época em que a missão de nossos líderes eleitos será ‘tornar o pais cool’. De muitas formas, essa época já chegou. Desde sua eleição em 1997, o Primeiro Ministro Tony Blair comprometeu-se a mudar a imagem um tanto desmatizada da Grã-Bretanha para uma ‘Cool Bretanha’. Depois de um encontro com Blair em uma sala de conferências que se parecia obra de um diretor de arte em Canary Wharf, o presidente francês Jacques Chirac disse ‘Estou impressionado. Isso tudo confere à Grã-Bretanha a imagem de um país jovem, dinâmico e moderno’. Na reunião do G8 em Birmingham, Blair transformou o majestoso encontro em uma sala de recreação informal onde os líderes assistiam vídeo-clips do All Saints e depois eram conduzidoss em uma rodada de ‘All you need is love’ (...) Blair é um líder mundial na pele de um estilista da nação – mas será que sua tentativa de ‘dar outra marca à Grã-Bretanha’vai funcionar mesmo, ou ele se agarrará à antiga e ultrapassada marca britânica? Se alguém pode fazer isso, esse alguém é Blair, que serviu de escudeiro para os profissionais de marketing da Revolution Soda e teve êxito em mudar o nome de seu partido de uma verdadeira descrição de suas lealdades e inclinações políticas (que seriam ‘trabalhistas’) para o rótulo de marca ‘Novo Trabalhismo’. Seu partido não é Partido Trabalhista, mas um partido que cheira a trabalhismo.”
(KLEIN, Naomi op. cit p.84)


Diante de tudo isso, fica quase evidente o papel que intervenções artísticas urbanas podem assumir: uma resistência à massiva animação cultural, uma interferência no excessivo branding corporativo e governamental (que pretendem fundir-se em um só, através de medidas como planejamento estratégico urbano) que sufocam a paisagem e as relações sociais. Incitar o debate, a reflexão sobre o que a cidade-marca esconde por trás dessa imagem, tão bem esculpida, de progresso, bem-estar e festa.

“(...) a mesma voracidade da caça corporativa ao cool fez mais que provocar a ascensão do ativismo baseado na marca: por intermédio das interferências na publicidade, do hacking de computadores e das festas ilegais e espontâneas, os jovens de todo o mundo estão agressivamente tomando o espaço do mundo corporativo, “desmarcando” esse espaço como guerrilheiros. Mas a eficácia do cool hunting também armou de outra forma o palco para o ativismo anti-corporação: inadvertidamente, expôs a impotência de quase todas formas de resistência política exceto a resistência anti-corporativa (...) “
(KLEIN, Naomi op. cit p.105)

Perante a apropriação de muitas das “técnicas” situacionistas de resistência urbana pela chamada animação cultural, se impõe uma necessidade de marginalização total das intervenções artísticas urbanas, em uma busca de novas formas de se colocar a reflexão sobre o espaço coletivo urbano, de se estimular relações pessoais não-funcionais cotidianas, que parecem estar desaparecendo juntamente com os espaços onde acontecem.
As experiências do graffiti, da pichação, as noções de “Terrorismo Poético” e de “Zonas Autônomas Temporárias” colocadas por Hakim Bey se tornam importantes referências e pontos de partida para essa busca de novas formas de resistência cultural.
Trilhar esse caminho marginal, da arte como um “crime poético”, descortina uma perspectiva para uma arte efêmera. Não que isso signifique alguma inferioridade, pelo contrário, conduz a um incessante trabalho de se recolocar na cidade, num dinamismo mutante. Diferenciando-se, assim, definitivamente e de uma maneira facilmente perceptível da arte submetida aos setores de marketing de alguma instituição financeira ou política, apropriada como um agente disfarçado de animação cultural, como forma de controle social.
Da análise do planejamento urbano baseado na aplicação de técnicas de gestão empresarial, chamado de planejamento estratégico, é possível se deduzir que URBANISMO = BRANDING. Em um cenário em que as técnicas de gestão de marca tentam produzir artificialmente a política, em que a publicidade regula a democracia e em que a mídia controla as opiniões, as intervenções urbanas que pretendam se colocar com uma postura crítica diante dessa realidade, que busquem estabelecer outros canais de comunicação e reflexão, não podem ser consideradas como uma forma de urbanismo, mas como uma alternativa que se propõe a estimular reflexões através da leitura da paisagem, colocar o debate sobre a cidade para além dos círculos acadêmicos para uma maior profundidade na reivindicação do espaço. Se aproxima a uma espécie de contra-urbanismo, ou seja: CONTRABRANDING.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos B.; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis RJ. Vozes, 2000.

BEY, Hakim. Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001

BEY, Hakim. Caos. São Paulo: Conrad, 2001

BOURRIAUD, Nicolas. Relational Aesthetics. Paris: Presses Du Réel, 2002.

HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005.

KLEIN, Naomi. Sem logo: A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de janeiro: Record, 2006.

LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo, SP. Moraes, 1991.